Em 2024, o Rio Grande do Sul enfrentou uma das maiores catástrofes naturais de sua história. Segundo o G1, as enchentes devastadoras afetaram 478 das 497 cidades do estado, causando alagamentos, inundações e deslizamentos de terra. Essa recente tragédia climática também evidenciou um fenômeno complexo na maneira como entendemos a disseminação de informações nos dias atuais. Ao mesmo tempo em que os canais tradicionais de mídia faziam a cobertura dos acontecimentos, as plataformas de redes sociais como TikTok e o Instagram Reels tornaram-se veículos centrais, tanto para a mobilização de resgates e de ajuda às famílias atingidas, quanto para a viralização de teorias da conspiração e desinformações.
Fonte: Tragédia no RS: Fake news atrapalham chegada de ajuda às vítimas. CNN Brasil. 2024 |
Conforme a reportagem publicada em vídeo no canal do Youtube da CNN Brasil, a solidariedade das pessoas para apoiar as comunidades afetadas pelas enchentes no Rio Grande do Sul encontrou como barreira a desinformação espalhada nas redes sociais que acabaram gerando pânico e atrapalharam as operações oficiais. Essa movimentação não é algo meramente casual, e vem sido demonstrada a algum tempo, com crescimento da utilização dessas redes para finalidades de disseminação de informações e notícias. Como aponta um estudo destacado pela CNN Brasil, a geração Z vem trocando ativamente o Google, principal agregador de sites (inclusive sites de notícias) utilizado atualmente, pelo TikTok para realizar buscas que vão desde assuntos mais triviais até notícias complexas.
Percebe-se, então, uma questão central que precisa ser analisada no que diz respeito as TICs e a educação: o que acontece quando uma plataforma de entretenimento (Mídia Social), otimizada por algoritmos de engajamento (TICs), torna-se um veículo primário de informação e educação (Educação em Rede)? Vamos analisar como o formato característico dos vídeos curtos, aliado a lógica de algoritmo de viralização e personalização de experiência do usuário, embora possa contribuir para a democratização da criação de conteúdo, também impõe desafios sérios relacionados, por exemplo, à capacidade de análise crítica dos próprios usuários, levantando então a necessidade de uma reestruturação da relação entre a educação tradicional e as redes sociais.
Um dos primeiros pilares para o desafio dessa análise é a própria arquitetura da plataforma. Para se encaixar no formato exigido, a informação é fragmentada para que caiba em vídeos curtos que podem ser de apenas alguns segundos ou até três minutos. Esse formato por si só desencoraja a apresentação de informações detalhadas, aprofundamentos sobre o tema divulgado ou a citação de fontes múltiplas de confiança. Mais do que isso, ele característicamente favorece o apelo emocional imediato, buscando causar raiva, surpresa ou humor, para capturar a atenção de quem visualiza, em detrimento de uma análise racional e calmamente ponderada das informações. Nesse cenário, não existe muito tempo para o contexto, apenas para o impacto.
Junto com o formato dos vídeos, vem o segundo problema para a temática abordada: o algoritmo. Ele não é apenas um distribuidor neutro de conteúdo. Ele funciona como um editor ativo que tem um objetivo comercial claro: manter o usuário o máximo de tempo possível na plataforma. O sucesso para o algoritmo não é a veracidade da informação, mas sim o engajamento, ou seja, curtidas, comentários e o tempo que os usuários passam assistindo. Por isso, ele é programado para identificar e priorizar exatamente o tipo de conteúdo que o formato curto já favorece, o impacto e o apelo emocional imediato. Como aponta um artigo do Correio Braziliense sobre o fenômeno "BookTok", por exemplo, o algoritmo tem o poder de decidir qual livro será o próximo sucesso de vendas, inclusive mesmo muitos anos após o lançamento da obra, mostrando sua força para criar tendências culturais e, por extensão, controlar narrativas. O resultado prático é o feed "Para Você", um ambiente totalmente personalizado que entrega ao usuário o que ele quer ver, e não o que é necessariamente verdadeiro ou relevante. Isso acaba reforçando vieses e criando "bolhas" de realidade, onde é difícil encontrar opiniões diferentes. Nesse ecossistema feito para a reação, uma desinformação impactante e emocional quase sempre se espalhará mais rápido que uma correção factual e sóbria.
O impacto desse consumo rápido e ininterrupto na cognição humana já é algo que vem sendo notado e estudado. Hoje já entende-se que a visualização constante de conteúdo hiper-fragmentado afeta a própria capacidade de análise. Um estudo publicado pelo National Institutes of Health (PMC) sobre os efeitos do uso de plataformas de vídeos curtos sugere que essa exposição prejudica funções cognitivas, reduz a capacidade de atenção e pode dificultar a habilidade de engajar em pensamento analítico profundo. Além disso, o feed dissolve a linha tênue que divide o que é informação, publicidade e entretenimento. No fluxo da rolagem infinita, um vídeo que relata uma notícia é seguido por uma dança, que é seguida por um "especialista" em saúde, que pode ser, na verdade, um influenciador pago realizando um marketing digital velado. A educação midiática clássica, focada em "checar a fonte", torna-se difícil quando a "fonte" é um criador carismático cuja autoridade é baseada na performance e não em credenciais verificáveis.
Apesar de ser um outro problema sério a ser abordado, a questão que está sendo analisada aqui está relacionada com a divulgação das informações, e é um pouco mais sutil que a "fake news" clássica. Trata-se da "misinformation", a desinformação por engano. Um corte de trinta segundos de uma entrevista de uma hora pode levar a conclusões precipitadas e factualmente incorretas, mesmo que o clipe em si não seja "falso".
Em uma conversa relatada no artigo “Mídias sociais e jornalismo: os perigos da desinformação” do Portal de notícias da UFJF, a coordenadora da Faculdade de Comunicação (Facom) Iluska Coutinho levantou a necessidade de considerar os tipos de desinformação ao analisar essa problemática. Segundo Pernisa, existem desinformações que são criadas a partir de conteúdos falsos, para propagar informações que não são verídicas, mas também existem aquelas notícias que estão apenas fora de contexto ou mal redigidas, que também devem ter nossa atenção. Ainda nessa conversa, para Pernisa, professor da FACOM, a grande confiança que parte da sociedade deposita nas redes sociais como sua principal fonte de notícias, muitas vezes deixando de lado a mídia tradicional, acontece por uma combinação de razões. Dentre elas, o conteúdo filtrado para os usuários. As plataformas são ótimas em mostrar assuntos que já atraem pessoalmente, o que deixa os usuários mais abertos a aceitar aquela informação. Outra razão citada, é que as próprias plataformas usam estratégias para prender a atenção, como títulos sensacionalistas e palavras-chave impactantes, que são feitas para aumentar o engajamento e os cliques, nem sempre se preocupando com a forma como tudo aquilo será interpretado.
Fica evidente, portanto, que o modelo tradicional de educação midiática, focado na dicotomia daquilo que é "fato ou fake", aplicado majoritariamente a textos de jornal, mostra-se insuficiente para este novo ecossistema. Ele não foi desenhado para um ambiente onde, como vimos, as fontes não são tão confiáveis e os comunicadores por vezes se preocupam mais com a viralização do que com o entendimento da informação. A resposta exige uma "educação em rede" que se adapte urgentemente, indo além da simples checagem de fatos. É preciso ensinar o usuário a "ler o formato" e a arquitetura da plataforma. Isso significa treinar o olhar crítico para questionar: Por que este vídeo viralizou? Quem é este criador e qual sua real autoridade no assunto? Qual o objetivo principal deste conteúdo: informar, entreter ou simplesmente capturar a atenção? Se a rolagem infinita é desenhada para reduzir o pensamento analítico (como sugere o estudo do NIH), a solução é ensinar o usuário a deliberadamente desacelerar. Isso implica em pausar o feed, desconfiar do impacto emocional imediato e pesquisar ativamente em outras fontes , ironicamente, até mesmo resgatando o papel de ferramentas de busca como o Google que, como mostrou a pesquisa da CNN Brasil, vêm sendo substituídas.
Essas novas estratégias de educação e adaptação são cruciais porque a "TikTokficação" da informação não é um problema isolado de uma plataforma. Ela é, na verdade, o sintoma mais visível de uma profunda mudança cultural na forma como nos relacionamos com o conhecimento e a verdade. Como analisado, a arquitetura da plataforma, com seu formato fragmentado que prioriza o impacto emocional, e a lógica do seu algoritmo, focado em retenção e personalização extrema, convergem para criar um terreno fértil onde a desinformação sutil, a "misinformation" fora de contexto, se espalha com mais eficácia que a verdade contextualizada e onde, como apontam estudos, o próprio pensamento crítico é enfraquecido pela sobrecarga cognitiva.
Além de pensar na adaptação do usuário, o debate sobre a "TikTokficação" exige um olhar crítico sobre os outros dois pilares desse ecossistema: os produtores de conteúdo e as próprias plataformas. Os criadores sérios (jornalistas, educadores, cientistas) enfrentam um dilema ético: devem "jogar o jogo" do algoritmo, usando a simplificação e o apelo emocional para competir pela atenção? Ao mesmo tempo, cresce a discussão sobre a responsabilidade das plataformas, exemplificada por legislações como o "Digital Services Act" (DSA) na Europa ou o debate sobre o PL 2630 no Brasil. Questiona-se, com razão, se as plataformas devem ser legalmente responsabilizadas pela arquitetura de engajamento que, como vimos, comprovadamente favorece a desinformação.
A outra frente de análise, talvez mais alarmante, é o impacto de longo prazo dessa nova dieta informacional. O estudo do NIH, que aponta para a redução da capacidade de atenção, é apenas a ponta do iceberg. A longo prazo, quais são as consequências sociais de uma geração que consome informação em um ambiente virtual otimizado para a reação emocional e não para a reflexão? O mesmo algoritmo de hiper-personalização que cria "bolhas de realidade", discutido anteriormente, atua como um poderoso acelerador de polarização social e política, minando a capacidade de debate público e consenso.
Fica claro que as TICs têm evoluído mais rápido que nossa capacidade de nos adaptar completamente para o melhor uso delas. Por enquanto, a solução principal para esse desafio provavelmente não está em demonizar ou banir o uso de redes sociais semelhantes ao TikTok como fonte de informação, mas sim reconhecer os riscos inerentes à sua estrutura. Trata-se de desenvolver uma nova consciência crítica sobre como consumimos conteúdo, aprendendo a navegar ativamente por essa complexa arquitetura de engajamento, em vez de apenas nos tornarmos vítimas passivas dela.
Declaração de IA e tecnologias assistidas por IA no processo de escrita:
Durante a preparação deste trabalho, o autor utilizou a ferramenta de IAG Gemini, no processo de planejamento, para aperfeiçoamento do texto e melhoria da legibilidade. Após o uso destas ferramentas, os textos foram revisados, editados e o conteúdo está em conformidade com o método científico. O(s) autor(es) assume(m) total responsabilidade pelo conteúdo da publicação.
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