quinta-feira, 12 de junho de 2025

O chão de fábrica da inteligência artificial

Gustavo Henrique Stankiewicz (21100629) EGC5020-09318/10316 (20251) - Redes Sociais e Virtuais

Em 1770, um inventor austríaco chamado Wolfgang Von Kempelen apresentou à Imperatriz Maria Teresa uma engenhoca que prometia ser uma revolução tecnológica para a época: o Turco Mecânico. A máquina, supostamente autônoma, era capaz de jogar xadrez com maestria e, ao longo de 84 anos, percorreu a Europa e as Américas desafiando e vencendo nomes como Napoleão Bonaparte e Benjamin Franklin. O fascínio durou até o artefato ser destruído em um incêndio em 1854. Com isso, veio à tona a verdade: a máquina era, na realidade, uma sofisticada ilusão. Dentro dela, um enxadrista de carne e osso controlava as peças, oculto da visão do público (Como…, 2024).



Mais de dois séculos depois, o nome da máquina - Mechanical Turk (ou Turco Mecânico, em português) - foi resgatado para batizar uma das primeiras plataformas de trabalho digital da gigante Amazon. A proposta da Amazon Mechanical Turk (AMT) era simples e inovadora: permitir que humanos realizassem, de forma remota, micro tarefas que, por enquanto, ainda escapam à automação completa das máquinas. A ideia se espalhou e, hoje, existem diversas plataformas semelhantes. O que pouca gente sabe, no entanto, é que, por trás da aparente inteligência das máquinas, existe um exército invisível de trabalhadores humanos (Como…, 2024; Inteligência….,c2025).



Trabalhadores invisíveis da era digital

Diariamente, milhões de pessoas ao redor do mundo dedicam horas a atividades repetitivas e mal remuneradas em frente a uma tela. Tirar selfies, classificar imagens, revisar textos, transcrever áudios, checar a veracidade de informações ou gravar vídeos com comandos específicos são apenas alguns dos exemplos. Essas pequenas tarefas são fragmentadas, distribuídas pelas plataformas e, uma vez concluídas, alimentam os sistemas de inteligência artificial que moldam o futuro da tecnologia (Como…, 2024; Inteligência….,c2025; Ferro; Terra, c2025; Rocha, 2019; Stachewski, 2019; Oliveira, 2024).

Esse modelo de trabalho, conhecido como microwork, não exige vínculo formal, mas cobra produtividade extrema. No Brasil, onde a taxa de desemprego e subemprego ainda é elevada, muitas pessoas encontram nessas plataformas uma forma de complementar a renda. No entanto, o que à primeira vista pode parecer uma oportunidade flexível e acessível, revela-se uma engrenagem marcada pela precarização e pela ausência de direitos trabalhistas (Como…, 2024; Oliveira, 2024).


A inteligência (ainda) depende de humanos

Os sistemas de inteligência artificial generativa, como os modelos de linguagem e imagem que se popularizaram nos últimos anos, dependem de um vasto volume de dados como fonte de aprendizado. Ao contrário dos modelos tradicionais de IA baseados em regras fixas, a IA generativa se baseia no machine learning, ou aprendizado de máquina, um processo estatístico de identificação de padrões (Como…, 2024; Inteligência….,c2025; Ferro; Terra, c2025; Rocha, 2019; Stachewski, 2019).

Para que um sistema consiga reconhecer uma bicicleta em uma imagem, por exemplo, ele precisa ser exposto a milhares - ou até milhões - de imagens de bicicletas previamente identificadas por humanos. Assim, quando uma câmera inteligente identifica uma bicicleta, ela está apenas reproduzindo o aprendizado que recebeu a partir do trabalho humano (Como…, 2024).

Apesar disso, o destaque da indústria e das regulamentações se concentra nas inovações tecnológicas, na proteção de dados e na mitigação de vieses algorítmicos, negligenciando os trabalhadores que tornam esse processo possível (Oliveira, 2024).


Expectativas irreais e a pressão por produtividade

Se de um lado temos trabalhadores sobrecarregados com tarefas manuais que alimentam os sistemas de IA, de outro lado emerge um fenômeno complementar: a crescente pressão sobre profissionais de outras áreas para aumentarem sua produtividade com o auxílio da inteligência artificial (Ferro; Terra, c2025; Oliveira, 2024).

Nos escritórios, redações, agências e até mesmo na administração pública, começa a se consolidar a ideia de que, com a IA, é possível - e necessário -  produzir mais em menos tempo. Planilhas devem ser analisadas mais rapidamente, relatórios redigidos em questão de minutos, decisões tomadas com base em dados inteligentes. A promessa de que a IA simplificaria processos virou, em muitos casos, uma imposição de maior eficiência e multitarefa, sem a correspondente redução da carga horária ou aumento de salário (Ferro; Terra, c2025; Oliveira, 2024).

Essa expectativa se baseia em uma premissa equivocada: a de que a inteligência artificial substitui a inteligência humana, quando, na realidade, ela depende profundamente dela - tanto para ser alimentada quanto para ser interpretada e supervisionada. A consequência prática disso é um ambiente de trabalho em que os profissionais se veem compelidos a aprender a usar ferramentas cada vez mais complexas, adaptando-se continuamente a mudanças tecnológicas, sob o risco de se tornarem obsoletos (Ferro; Terra, c2025; Oliveira, 2024).

O que deveria ser uma tecnologia de apoio tornou-se, em muitos casos, um instrumento de intensificação do trabalho. As habilidades socioemocionais, o pensamento crítico e a criatividade, que nenhuma IA consegue replicar com autenticidade, continuam sendo exigidos -  agora, somados ao domínio técnico das ferramentas automatizadas (Ferro; Terra, c2025; Oliveira, 2024).

Essa combinação leva ao aumento do estresse, da ansiedade e da sensação constante de inadequação entre trabalhadores de diferentes áreas. Muitos relatam não ter recebido treinamento adequado para lidar com as novas exigências tecnológicas, mas mesmo assim precisam dar conta, sob pena de perderem oportunidades ou reconhecimento.


Precarização e opacidade

As condições de trabalho nas plataformas de microwork seguem padrões semelhantes em diversas partes do mundo, especialmente nos países com baixos índices salariais - como o Brasil, Índia e Filipinas. A lógica de funcionamento é simples: grandes empresas de tecnologia contratam plataformas intermediárias, que, por sua vez, distribuem tarefas para trabalhadores sem a necessidade de contratos formais (Rocha, 2019; Stachewski, 2019; Oliveira, 2024).

Esses trabalhadores, muitas vezes, não têm acesso às informações sobre o objetivo real das tarefas que executam, nem sabem para qual empresa ou projeto estão contribuindo. Além disso, enfrentam mecanismos de controle rígidos, como contratos de confidencialidade que proíbem qualquer tipo de organização coletiva, discussões sobre os projetos ou reivindicações por melhores condições de trabalho (Rocha, 2019; Stachewski, 2019; Oliveira, 2024).

Quem não cumpre metas mínimas ou comete erros pode ser penalizado com suspensão ou até desligamento sem explicações. A lógica da gamificação impõe metas rigorosas e cria um ambiente competitivo que ignora o bem-estar dos trabalhadores. Para cumprir prazos apertados, muitos recorrem a ferramentas como o Google Tradutor ou até mesmo a modelos de IA como o Chat GPT para completar tarefas com mais rapidez - criando, ironicamente, um ciclo de dependência e retroalimentação entre humanos e máquinas (Oliveira, 2024).


Falta transparência - e regulamentação

O debate sobre regulação da inteligência artificial vem ganhando espaço em fóruns internacionais, no Parlamento Europeu e também no Congresso Nacional brasileiro. Mas, até agora, as propostas têm se concentrado nos sistemas e algoritmos em si - buscando garantir segurança jurídica às empresas, reduzir preconceitos embutidos nos dados e garantir a explicabilidade das decisões tomadas pelas máquinas (Oliveira, 2024).

Pouco se discute, porém, sobre os impactos humanos da produção de dados. Há uma ausência quase total de iniciativas que contemplem os direitos trabalhistas, a proteção social e a participação ativa dos trabalhadores da base da IA - justamente aqueles que tornam possíveis as tecnologias que fascinam o mundo (Oliveira, 2024).

Sem olhar para essas condições de trabalho, no entanto, será difícil garantir que os sistemas de IA sejam realmente justos, transparentes e éticos. Ignorar essa dimensão é repetir, em escala digital, uma velha história: a de máquinas que parecem autônomas, mas escondem seres humanos sacrificados em silêncio, do outro lado da tela.


O turco, de novo

Assim como no século XVIII, quando o Turco Mecânico surpreendia as plateias da Europa sem que ninguém soubesse do enxadrista escondido, hoje seguimos fascinados pela inteligência das máquinas - esquecendo que há mãos humanas por trás de sua suposta autonomia. A nova revolução digital, portanto, não é apenas tecnológica: é também social, econômica e ética. E está mais do que na hora de tirarmos a cortina que oculta o verdadeiro chão de fábrica da inteligência artificial.
📷 As imagens utilizadas ao longo do texto possuem hyperlinks que direciona o leitor para a sua fonte.             🎥 Confira a 
reportagem do Intercept Brasil sobre o tema.


🧑‍🏫 Veja a entrevista do professor Rafael Grohmann sobre o assunto.



Referências Bibliográficas:

COMO funciona o trabalho humano por trás da inteligência artificial. Vídeo, 4min36s.  Intercept Brasil, 22 jul. 2024. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=F0M9OH5n-hg. Acesso em: 08 jun. 2025.


FERRO, Mariza; TERRA, Paulo Cruz. UFF Responde: Inteligência Artificial e mercado de trabalho. Universidade Federal Fluminense, c2025. Disponível em: https://www.uff.br/26-06-2024/uff-responde-inteligencia-artificial-e-mercado-de-trabalho/. Acesso em: 10 jun. 2025.


INTELIGÊNCIA artificial esconde precarização do trabalho. Institutolula.org. c2025. Disponível em: <https://institutolula.org/noticias/cursos-andamento/inteligencia-artificial-esconde-precarizacao-do-trabalho>. Acesso em: 08 jun. 2025.


OLIVEIRA, Murilo Moraes. Uma revisão de literatura sobre a precarização do trabalho promovida pela inteligência artificial, v.15, n.4 (2024): CONICT - Congresso de Inovação, Ciência e Tecnologia do IFSP. Disponível em: https://congressos.ifsp.edu.br/conict/article/view/784. Acesso em: 03 jun. 2025.


ROCHA, Camilo. O trabalho humano escondido atrás da inteligência artificial. Nexo Jornal: 18 jun. 2019. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/06/18/o-trabalho-humano-escondido-atras-da-inteligencia-artificial. Acesso em: 08 jun. 2025.


STACHEWSKI, Ana Laura. O invisível trabalho humano por trás da inteligência artificial. Época Negócios: 18 jul. 2019. Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Carreira/noticia/2019/07/o-invisivel-trabalho-humano-por-tras-da-inteligencia-artificial.html. Acesso em: 08 jun. 2025. Declaração de IA e tecnologias assistidas por IA no processo de escrita: durante a preparação deste trabalho, os autores utilizaram ferramentas de Inteligência Artificial Generativa no processo de planejamento, para aperfeiçoamento do texto e melhoria da legibilidade. Após o uso destas ferramentas, os textos foram revisados, editados e o conteúdo está em conformidade com o método científico. O autor assume total responsabilidade pelo conteúdo da publicação.

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