quarta-feira, 6 de junho de 2018

O HÁBITO DE COLECIONAR CONHECIMENTOS É O QUE NOS TORNA HUMANOS



Várias coisas diferenciam, biologicamente, um ser humano de qualquer outro animal. Há, no entanto, quem diga que não há tantas assim: o DNA humano possui semelhança perto de 96% com os chimpanzés[i] – e há quem pesquise a semelhança genética de homens e porcos, camundongos e até fungos, para tratamentos medicinais.

Mas o que nos torna humanos não é a capacidade de andar sobre duas patas ou sintetizar certas substâncias no estômago, tampouco a capacidade de usar ferramentas – macacos, elefantes, golfinhos e até corvos usam ferramentas[ii]. O cérebro humano – em sua complexidade, não apenas tamanho – nos diferencia de forma definitiva dos animais e, dentre todas as diferenças, as habilidades no campo do aprendizado são fundamentais.

Claro: o mundo animal possui bons exemplos de formas de ensino e aprendizado: chimpanzés podem aprender a se comunicar usando meios não naturais - linguagem dos sinais, por exemplo - e se organizar em sociedades com cultura e política[iii]. Alguns animais são mais diretos: as mães pássaro de algumas espécies atiram o filhote da árvore quando sua plumagem está completa, dando-lhe alguns segundos para que seu instinto o ensine a voar na marra. Lendo sobre os animais e suas formas de ensinar e aprender, uma coisa fica clara sobre o ser humano: nossa habilidade de se comunicar em vários canais, acumular conhecimento e aprender sobre algo apenas por abstrações são um diferencial muito mais impactante do que apenas ser bipedal.


A COMUNICAÇÃO

A principal forma de comunicação direta do ser humano é a verbal: aprendemos desde cedo a fazer a associação da voz com o fonema, logo após do fonema com a ideia. Já nos primeiros anos de uma criança ela consegue estabelecer comunicações complexas fazendo associações de ideias que não necessariamente tem uma conexão: ela aprende o que é “sorvete”, o que é “bom”, o que é “ruim”, e consegue dissertar sobre como determinado sabor de sorvete é bom e outro é ruim, e como o mesmo sabor pode ser bom ou ruim dependendo da estação do ano. Se ela não sabe explicar determinada coisa – uma “estação do ano”, por exemplo – ela busca associações que ela mesma conheça – logo, o inverno é frio, o verão é quente, o outono é quando ela vai passar férias na casa da avó e, utilizando-se de comunicação verbal, ela comunica uma ideia.

Outra forma de comunicação – que rivaliza e até mesmo ultrapassa a comunicação verbal – é a comunicação gestual: os gestos, expressões faciais e posturas corporais que acompanham – ou não – a comunicação verbal. Pegando a criança como exemplo: podemos perguntar a uma criança como é uma roda gigante e ela pode dizer que a roda gigante é “grande” e “dá medo porque vamos para o alto”, e com as mãos fazer um gesto que parece o formato da roda gigante: circular. Sem nunca citar que a roda gigante é circular, a criança comunica através das mãos qual o seu formato. Postura e expressões gestuais e faciais são, segundo alguns pesquisadores, responsáveis por em média 55% de toda nossa comunicação – deixando voz e suas entonações, com 38%, e as palavras que dizemos com apenas 7%, para trás.[iv] A comunicação gestual é tão abundante e importante, que é capaz inclusive de comunicar algo que alguém está se esforçando para não revelar: como aquele amigo que diz que está bem, mas você sabe que não está apenas pela sua expressão.

O ser humano conseguiu, ao longo de sua existência, desenvolver de forma precisa a sua comunicação direta, mas ela não seria, nem de perto, suficiente para trazer a humanidade ao patamar de hoje. Digamos, apenas a título de hipótese, que o ser humano dispusesse apenas de comunicação verbal no decorrer da evolução: o primeiro ser humano a inventar um arco (uma das invenções mais impactantes no modo de vida do ser humano na história)[v] teria o potencial de mudar a humanidade para sempre, bastava ensinar os outros seres humanos a fabricar arcos e a usa-los. Digamos que este inventor ficasse tão excitado com sua descoberta que, ao correr para contar aos outros, tropeçasse com a flecha na mão, perfurando um pulmão ao cair (sim, bastante sonhador e inusitado, eu sei, mas serve ao propósito): sem poder contar aos outros como reproduzir sua invenção e usa-la, a humanidade estaria fadada a continuar em seu estado, privada do progresso que aquela invenção proporcionaria. Mesmo que o fizesse e todos aprendessem a manejar arcos, a comunicação verbal pura e simples não seria capaz de levar a humanidade muito longe: imagine ter que aprender, verbalmente e do zero, tudo que a humanidade já progrediu nestes anos todos. Para a construção de uma locomotiva a vapor, por exemplo, muitos campos diferentes de conhecimento se unem para este propósito: metalurgia, matemática, física, mecânica e até geografia, para citar alguns. Imagine ter que passar todo esse conjunto de conhecimentos oralmente antes de construir e usar uma locomotiva – e novamente, quando um novo interessado aparecesse. 


CONHECIMENTO E APRENDIZADO

Um exemplo simples: Sabe como faz um bolo de chocolate? Faz assim: quebre quatro ovos, separe as claras das gemas. Bata com um garfo as claras até o ponto de neve, deixe as claras em neve à espera no final. Misture as gemas com duas colheres de manteiga e uma de açúcar até obter uma massa homogênea, acrescentando três xícaras de farinha e uma de leite aos poucos sem parar de bater. Depois, adicione as claras com uma colher de sopa de fermento. Unte uma forma e espalhe farinha nela até ficar uma fina camada, coloque a massa dentro e leve para o forno, a 180 graus, por 40 minutos. Bem, esta publicação já conseguiu te ensinar, ao menos, como fazer um bolo! O leitor atento saberá fazer um bolo sem nunca ter feito um de fato, graças à capacidade de absorver o conhecimento sem ter que experimentá-lo.

Este é um ponto crucial para a humanidade: sua habilidade de acumular conhecimento e comunica-lo através de outros meios, que não o verbal, sem nem ao menos necessitar do comunicador original. E mais: sua capacidade de abstrair os objetos e conceitos descritos nesta comunicação torna mais fácil a tarefa de replicar o conhecimento ali contido, se necessário. Ao contrário dos animais que aprendem basicamente por experimentação e condicionamento – ou voa ou morre, isso dói, o pote de ração está atrás do armário – o ser humano pode acumular e replicar o conhecimento sem a parte empírica da coisa - como esta receita de bolo, que eu sei que funciona a despeito de nunca ter tentado reproduzi-la, para o bem das pessoas lá de casa.

Outro fator positivo do acúmulo de conhecimento e da comunicação escrita é a evolução do conhecimento: um conhecimento pode ser desenvolvido e aprimorado ao longo do tempo, sem nunca se perder. Imagine a química ou engenharia, por exemplo, e não é difícil notar este fato na prática. Há quem diga que a primeira forma de transmissão de conhecimento utilizando-se de registro foram as pinturas rupestres – cuja interpretação é incerta e varia desde desenhos sem função alguma, até arte com caráter educativo e religioso[vi], mas foi a partir das escritas cuneiformes que a codificação de símbolos para transmitir conhecimento começou de fato, a mais de 4000 a.C. De lá para cá, toda forma de métodos e simbologia foi usada para acumular conhecimento.

O conhecimento pode tornar-se obsoleto – como operar um telégrafo – ser perdido ou destruído. Lembra-se do caso do inventor de arco e flecha descrito acima? Ele aconteceu de fato várias vezes durante a história da humanidade – inclusive está acontecendo com alguns conhecimentos que irão morrer com seus donos caso não sejam passados adiante: Whang Od é a última mestre tatuadora da sua tribo nas filipinas[vii], por exemplo. Um dos acontecimentos mais notórios de atraso da humanidade por perca de conhecimento foi o incêndio que destruiu a Grande Biblioteca de Alexandria – apesar de alguns manuscritos terem sido salvos e mantidos em uma livraria menor, não há como dizer o quanto do conhecimento sobre o mundo antigo foi perdido com a destruição daquela que fazia parte, junto com o Museu de Alexandria, da maior coleção de conhecimento do seu tempo[viii]. Ideologias como a nazista praticavam a queima de livros de outras ideologias como forma de cercear sua população de determinado conhecimento a fim de manter uma ordem dominante, sem contestação[ix].

Mesmo nos dias contemporâneos, com toda estrutura de comunicação, o risco de perder o conhecimento existe. Imagine-se acordando em um cenário de apocalipse – zumbi, alienígena, atômico, climático... apenas escolha seu apocalipse mais confortável. Você e um grupo de pessoas decidem sobreviver juntos e reconstruir, na medida do possível, a humanidade. Por onde vocês começam? Pela Internet? Sistemas de GPS? Tentar colocar as telecomunicações de volta ao ar?

A maioria da humanidade – inclusive este pobre escritor que vos escreve – descobriria que, para a sua frustração, você é incapaz de acender um fogo sem um fósforo ou um isqueiro. A falta de um sistema de gás ou de eletricidade tornaria a maioria da comida industrializada/congelada inútil em poucos dias. A água precisa ser encontrada ou coletada em seu estado natural, e uma vida inteira tomando água pura e tratada tornou a água do ambiente potencialmente perigosa para nós. Com a vida caindo neste nível de caos, como você, leitor, pretende colocar as comunicações de volta no ar? E se você acha que este cenário é improvável, já há relatos que nos dão uma amostra grátis de como seria, como o acontecido em Quebec em 2011 e Atlantic City em 2017[x]: falhas em cabos de fibra ótica cortaram a comunicação via internet e telefonia nestas localidades por algumas horas, o suficiente para instaurar o caos financeiro – com clientes sem poder sacar dinheiro ou usar cartões de crédito –, e atrapalhar as operações em aeroportos e hospitais, altamente dependentes dos sistemas de comunicação.

Estes exemplos extremos servem, também, para mostrar o poder da comunicação, aprendizagem e adaptação humanas: no caso do apocalipse, colocar um nível mínimo de comunicação para funcionar não parece tão impossível se no grupo de pessoas restantes houver um operador de rádio amador e um eletricista. Além disso, com a capacidade humana de acumular e replicar o conhecimento, muito poderia ser resgatado em bibliotecas, posto em uso e novamente acumulado para as gerações futuras. No caso da queda de comunicação digital e da Internet – como os exemplos do Canadá – se não houvesse forma de colocar o mundo online novamente, em poucos dias a comunicação analógica começaria a ser usada de novo. Eventualmente a humanidade resgataria as tecnologias perdidas.

TECNOLOGIAS

Isto tudo nos leva àquilo que possibilitou a humanidade a acumular e replicar todo o conhecimento gerado ao longo do tempo: a tecnologia. É comum associar tecnologia a toda série de gadgets eletrônicos presentes no nosso dia a dia: computadores, laptops, celulares e etc. Mas tecnologia é qualquer produto advindo de um conhecimento que pode nos auxiliar de alguma forma. O papel é uma forma de tecnologia, o lápis é uma forma de tecnologia, a corda, a bússola, a enxada, o torpedo. Independente da complexidade, se algo cumpre uma função e advém do uso de um ou mais campos do conhecimento, é tecnologia.

Lá no início da simbologia em escrita cuneiforme, a argila era moldada em determinados formatos, diferentes dependendo do local e povo de origem, para servir de veículo de registro. Nas civilizações mais antigas usavam-se pedras também – como a da Roseta (primeiro texto bilíngue recuperado na história moderna[xi]). Os egípcios escreviam – muito – nas paredes de templos e palácios e foram responsáveis pela criação do papiro – precursor do papel – que foi um meio bastante popular de difusão da escrita no mundo antigo. Na Idade Média os religiosos espalhados por monastérios cristãos foram os principais mantenedores do conhecimento no ocidente, copiando, arquivando e redistribuindo edições de livros em papel ou pergaminho (pele curtida de animais, preparada especificamente para escrever) entre outros monastérios. Bibliotecas eram um luxo de reis e do clero, e o mundo vivia uma era de trevas do conhecimento – onde este não estava simplesmente disponível para todos.

Então, Gutenberg inventou a máquina de imprensa por tipos – que usava tipos, pequenas peças montadas em uma página padrão, para imprimir as páginas dos livros – e mudou drasticamente a história do conhecimento: com a imprensa os livros poderiam ser replicados e distribuídos, as bibliotecas e o conhecimento deixaram de ser um privilégio dos reis e foram, pouco a pouco, se disseminando e se tornando mais populares. A acessibilidade ao conhecimento acompanha a própria trajetória de progresso da humanidade: dos monges copiando livros aos primeiros livros impressos, dos vendedores de enciclopédia de porta em porta à Internet, Kindle e Nuvem. Dos anciões às escolas, das salas de aula às AVAs. Com o advento da Internet e sua massificação, nem é preciso sair de casa para ter acesso a uma biblioteca, ou mesmo a um curso superior: as informações estão ali, ao alcance da mão.

A humanidade, no entanto, não interrompe sua trajetória de progresso: novas tecnologias surgem de forma cada vez mais acelerada para suprir as mais variadas necessidades do ser humano – incluindo aquelas envolvidas no processo de acúmulo e geração de conhecimento. Já há pesquisas[xii] – bem avançadas, por sinal – para criar implantes de expansão de memória que funcionem em seres humanos. Já pensou poder lembrar-se de cada publicação, dados ou imagem a que teve acesso na vida? A humanidade já usou todas as ferramentas imagináveis para armazenar conhecimento, e está fazendo o caminho de volta para a primeira: ela mesma.









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