domingo, 1 de novembro de 2020

Jogos digitais - Um possível passo para uma nova etapa da educação

 


As restrições materiais impostas pelo cenário de pandemia ocorrido nos últimos meses pôs em voga a utilidade prática de métodos alternativos de se desenvolver o ensino básico e acadêmico com o uso de ferramentas digitais. Porém, até então, a grande área de debate e análise consiste em uma simples adaptação do ensino presencial clássico para sua forma virtualizada. Segundo o psicopedagogo e professor Celso Antunes, “A aula expositiva convencional foi criada antes da descoberta do Brasil. Ela é herdeira de um período medieval em que os livros ainda estavam sendo criados e, como não era possível cada um ter um livro, as ordens eclesiásticas tinham o ‘lector’, aquele que lia para os interessados”. Este modelo de aprendizado ainda é norma, com mínimas variações, apesar da imensa disparidade tecnológica entre a época de sua criação e a atualidade. Em vez de serem feitas leves mudanças como as atuais, devem ser discutidas propostas que elevem a natureza do processo de ensino ao mesmo nível das possibilidades de inovação geradas pela ciência e as demais áreas de conhecimento humano.



Uma das intervenções potenciais toma a figura da utilização de jogos digitais – games – na metodologia de educação. Essa intervenção é, desde seu princípio, uma mudança fundamental de abordagem. A grande parte do ensino na escola é feito através de palavras: o professor escreve palavras no quadro, fala palavras, os estudantes recebem livros com palavras e é esperado que respondam perguntas com palavras. Como abordado no TED Talk de Matthew Peterson, tomando o exemplo do estado da Califórnia nos EUA, a maioria dos estudantes apresenta dificuldades de aprendizagem baseadas na linguagem ou se identificam como “visual learners”, de modo que as palavras operam como um obstáculo para o aprendizado. Como então dizer para os estudantes o que eles precisam fazer sem palavras? A resposta encontra-se em softwares interativos com feedback de informação, que muitas vezes toma a forma de jogos digitais. É possível mostrar visualmente para o estudante porque ele está certo ou errado após determinada ação, como um clique, assim, o feedback ensina os estudantes de forma mais instrutiva do que qualquer método puramente linguístico, mesmo para conteúdos relativamente sofisticados como álgebra. Matthew comenta de um estudo conduzido por pesquisadores em que foram introduzidos esses tipos de jogos visuais em 106 escolas da Califórnia. Após um ano, eles conseguiram triplicar a taxa de crescimento em proficiência matemática nessas escolas. O mesmo estudo foi replicado diversas vezes em diferentes estados dos EUA com resultados próximos.



Outra peculiaridade dessa ferramenta é o atributo de que os jogadores persistem em face ao fracasso, toleram a frustação e tentam repetidas vezes a fim de obterem um resultado satisfatório. Se trata dessa abordagem estratégica e repetitiva, baseada em aprender pelas falhas com o sentido de completarem uma missão. Não existe vergonha por começar novamente no jogo, não há estigma na falha. Nas avaliações do atual sistema de educação, se começa com uma nota elevada e toda vez que se comete um erro a nota vai diminuindo. No mundo dos games, ocorre o oposto, o início é no ponto zero e toda vez que se realiza ações corretas a nota fica maior. É uma completa inversão da maneira como aprendemos. Quando se está jogando, a mente funciona em um processo cognitivo específico: se observa o problema, se forma uma hipótese e depois a hipótese é testada. No fim, se aprende em um movimento de repetição deveras similar ao que se convém chamar de método científico. O truque é deixar os estudantes tão dedicados ao aprendizado quanto eles são para games. É possível usar essa característica dos jogos para dar a chance das crianças construírem uma representação, uma analogia ou um modelo em preparação para o aprendizado. O conceito se torna familiar não por conta do que ele representa, mas porque uma das habilidades de sobrevivência dentro do jogo o requere. O que se sabe a respeito de aprendizagem nos diz que construir uma figura é mais significativo do que simplesmente observá-la, ainda que acompanhada de uma boa explicação. O objetivo não é tornar a aprendizagem “mais fácil” . Aprendizagem não se trata relaxar e se divertir, se trata, na verdade, do esforço deliberado no processo de se aprender algo. A beleza de game-based learning não é sobre tornar as coisas fáceis, a questão é que se consegue que as pessoas realizem os esforços por elas mesmas, sem necessitar de alguém constantemente as incentivando e instruindo.


De um ponto de vista mais científico, a revisão da literatura acadêmica demonstra resultados bastante claros. No artigo “O efeito de jogos e simulações no ensino superior: uma revisão sistemática da literatura”, os autores confirmam que jogos e simulações contribuem para os resultados da aprendizagem cognitiva, incluindo aquisição de conhecimento, aplicação conceitual, compreensão de conteúdo e aprendizagem direcionada à ação. Outros revisores anteriores ecoaram esses achados enfatizando o importante papel dos jogos na aquisição de conhecimento e compreensão de conteúdo. Apesar dos benefícios significativos nos resultados de aprendizagem destacados, o alto custo de projetar jogos e simulações ainda é um desafio relevante. Para superar essa barreira de custos, governos, pesquisadores, instrutores e game designers devem colaborar para encontrar soluções acessíveis, para possibilitar o desenvolvimento de jogos e simulações. Na opinião de Begoña Gros, da Universidade de Barcelona, o uso de jogos digitais já se mostrou bem sucedido para incentivar a participação dos alunos, portanto, as pesquisas devem se concentrar mais em como os jogos podem ser melhor usados para aprender, ao invés de procurar se os jogos podem ser usados na educação.

Obviamente, há ainda muito a ser discutido sobre os métodos mais efetivos de implementar tal ferramenta no sistema de educação geral e suas especificidades, porém, suas vantagens são explícitas e bem documentadas. Devem existir muitas outras abordagens com o mesmo sentido, mas o uso dos jogos digitais no ensino pode ser um primeiro passo para uma nova etapa da educação. 


Autor: Vitor Scheffer Sabbi


REFERÊNCIAS: 

A escola do amanhã e as novas maneiras de dar aula. In: ENTREVISTA COM CELSO ANTUNES. Blog Inovação e Tendências. 2014. Disponível em: https://tecnologia.educacional.com.br/blog-inovacao-e-tendencias/escola-amanha-maneiras-dar-aula/ . Acesso em: 24 de outubro de 2020.

EDCWorldwide. Video Games for Learning. 2012. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AFyjKRW1FkM. Acesso em: 24 de outubro de 2020.

GROS, Begoña.   Digital Games in Education: The Design of Game-Based Learning Environments. 2006. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/265425294_Digital_Games_in_Education_The_Design_of_Game-Based_Learning_Environments. Acesso em: 24 de outubro de 2020.

PETTERSON, Matthew. Teaching without words. 2011. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2VLje8QRrwg. Acesso em: 24 de outubro de 2020.

SEE, Cristopher. Gamification in Higher Education. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=d8s3kZz1yQ4. Acesso em: 24 de outubro de 2020.

VLACHOPOULOS, Dimitrios; MAKRI, Agoritsa. The effect of games and simulations on higher education: a systematic literature review. 2017. Disponível em: https://educationaltechnologyjournal.springeropen.com/articles/10.1186/s41239-017-0062-1. Acesso em: 24 de outubro de 2020.



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