Disciplina: Redes Sociais e Virtuais
1. O nascimento das celebridades sintéticas
A arte sempre acompanhou a tecnologia — da prensa tipográfica ao cinema digital. Mas nunca a fronteira entre o humano e a máquina pareceu tão turva quanto agora.
Em setembro de 2025, a cantora virtual Xania Monet, criada integralmente por inteligência artificial (IA), assinou contrato com uma gravadora multinacional. O fato acendeu um alerta jurídico e ético: quem detém os direitos sobre músicas compostas e interpretadas por uma entidade não humana?
Poucas semanas depois, o lançamento da atriz Tilly Norwood, também gerada por IA, provocou protestos em Hollywood, com sindicatos denunciando o risco de substituição de profissionais humanos e o uso indevido de suas imagens. Esses episódios revelam o tamanho da lacuna entre o ritmo tecnológico e a lentidão do Direito — e mostram como as redes sociais amplificam essa nova forma de “arte sem artista”.
2. A lacuna jurídica: quando a lei ainda presume humanidade
A maior parte das legislações atuais de direitos autorais e de imagem parte de um mesmo pressuposto: a autoria é humana.
Nos Estados Unidos, o Copyright Act de 1976 não faz distinção entre obras humanas e não-humanas no ato de publicar. Em 2023, o U.S. Copyright Office alterou esse entendimento ao negar proteção a uma imagem produzida integralmente por IA, no caso Thaler v. Perlmutter, afirmando que a criatividade requer contribuição humana consciente.
Na União Europeia, a Diretiva 2001/29/CE também presume autoria humana. O debate europeu hoje se concentra na revisão dessa norma: o AI Act, aprovado pelo Parlamento Europeu em 2024, é a primeira proposta de legislação continental sobre IA, e embora trate de transparência e rastreabilidade, ainda não define quem é o autor de uma obra gerada por algoritmos.
Já o Reino Unido possui uma exceção curiosa. Desde 1988, sua Copyright, Designs and Patents Act estabelece que “o autor de uma obra gerada por computador é a pessoa que fez os arranjos necessários para sua criação”. Essa cláusula é frequentemente citada como precursora da discussão moderna sobre autoria de IA, mas raramente aplicada nos tribunais.
Nos países asiáticos, o cenário é diverso. O Japão tem decisões que reconhecem direitos limitados aos desenvolvedores de sistemas de IA, enquanto a China adota o entendimento de que somente há proteção se houver contribuição humana relevante. Resultado: nenhum consenso internacional. Cada país tenta adaptar um conceito do século XX à tecnologia do século XXI.
3. Direito de imagem e identidade digital: o rosto e a voz da nova era
Os dilemas não param na autoria. A imagem e a voz — hoje reproduzidas com extrema fidelidade por modelos generativos — estão no centro de outra zona cinzenta jurídica.
Nos Estados Unidos, o chamado right of publicity garante a cada pessoa o controle sobre o uso comercial de sua imagem. Em estados como Califórnia e Nova York, essa proteção se estende mesmo após a morte, o que reacendeu o debate sobre o uso de inteligência artificial para “reviver” atores falecidos em produções audiovisuais.
Na Europa, o foco é a proteção de dados pessoais: o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) considera a imagem um dado biométrico sensível, e seu uso requer consentimento explícito. Dessa forma, um avatar de IA criado a partir de fotos de usuários de redes sociais pode violar a GDPR, mesmo que sem fins lucrativos.
Essa assimetria global revela um problema central: enquanto a IA opera em escala mundial, as leis que tentam controlá-la continuam restritas a fronteiras nacionais.
Imagem gerada por inteligência artificial.
4. As redes sociais como catalisadoras do vácuo normativo
As redes sociais são o ambiente onde essa transformação se manifesta de forma mais intensa. Plataformas como Instagram, TikTok e YouTube não apenas hospedam, mas incentivam a produção de conteúdo gerado por IA.
Influenciadores sintéticos e artistas virtuais acumulam milhões de seguidores, firmam contratos com marcas e moldam tendências culturais. O público muitas vezes interage com essas figuras sem saber que são completamente artificiais.
Ainda não há obrigatoriedade de sinalizar conteúdos gerados por IA, embora a União Europeia e os Estados Unidos tenham publicado diretrizes para a identificação (“watermarking”) de obras sintéticas. A ausência de regras efetivas transforma as redes em um laboratório ético, no qual a autenticidade e a autoria se tornam conceitos elásticos — e o engajamento, o principal critério de valor.
5. Responsabilidade: quando a criação gera conflito
Quando uma IA reproduz trechos de músicas, imagens ou estilos humanos, quem responde pelo resultado? O programador, o usuário ou a empresa que mantém o modelo?
Nos Estados Unidos, tribunais vêm responsabilizando as empresas que utilizam a IA de forma comercial, mas não necessariamente os desenvolvedores. Na Europa, o AI Act cria categorias de risco e obrigações de transparência, mas ainda não define responsabilidades civis diretas. Na prática, a ausência de regulamentação deixa criadores humanos vulneráveis — suas obras servem de base para sistemas que podem substituí-los, sem reconhecimento ou compensação.
O dilema é ético, jurídico e econômico: a IA precisa da arte humana para aprender, mas ameaça tornar o próprio artista dispensável.
6. Criatividade algorítmica e o futuro da autoria
Por trás da discussão legal há uma questão filosófica: o que significa “criar”? As inteligências artificiais não inventam do nada — elas aprendem a partir de padrões, imitando combinações de elementos pré-existentes. O resultado é uma estética familiar, mas sem vivência, sem experiência emocional.
Isso não elimina o valor da IA como ferramenta. Para muitos artistas, ela amplia o repertório e permite experimentar novas formas de expressão. Para outros, representa a diluição da singularidade humana em uma massa de dados anônimos.
O equilíbrio talvez esteja na colaboração: usar a IA como extensão da imaginação, não como substituta da sensibilidade. A arte do futuro pode ser híbrida — feita de emoções humanas e cálculos de máquina, coexistindo em um mesmo palco digital.
7. Conclusão: o novo contrato entre homem e máquina
A revolução trazida pela IA não é apenas tecnológica — é cultural e simbólica. A cada nova cantora sintética, ator digital ou influenciador virtual, a humanidade é convidada a repensar o sentido da criação, da autoria e até da identidade.
Enquanto governos e instituições tentam acompanhar o ritmo da inovação, o desafio permanece o mesmo: garantir que a tecnologia sirva à arte — e não o contrário. A arte sem artista é possível. Mas o mundo sem humanidade na arte talvez não valha a pena.
Durante a elaboração deste artigo, o autor utilizou a ferramenta ChatGPT (OpenAI) para o planejamento estrutural, aprimoramento textual e revisão de legibilidade. O texto final foi revisado e editado, e o autor assume total responsabilidade pelo conteúdo da publicação.
Referências
- CANALTECH. Contrato de cantora criada por IA com gravadora causa um caos de direito autoral. 29 set. 2025. Disponível em: https://canaltech.com.br/inteligencia-artificial/contrato-de-cantora-criada-por-ia-com-gravadora-causa-um-caos-de-direito-autoral/. Acesso em: 5 nov. 2025.
- EUROPEAN PARLIAMENT. Artificial Intelligence Act... Strasbourg, 2024.
- FRADE, Renan Martins. Lei nos EUA agora regula uso de IA para “reviver” atores que morreram. UOL Splash – Na Sua Tela, 12 set. 2024. Disponível em: https://www.uol.com.br/splash/colunas/na-sua-tela/2024/09/12/ia-revivendo-famosos-morreram-lei.htm . Acesso em: 17 nov. 2025.
- G1. Atriz criada por inteligência artificial gera protestos em Hollywood. 1 out. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2025/10/01/atriz-criada-por-inteligencia-artificial-gera-protestos-em-hollywood.ghtml. Acesso em: 5 nov. 2025.
- JAPAN. Copyright Act (Act No. 48 of 1970). Agency for Cultural Affairs, Government of Japan. Disponível em: https://www.cric.or.jp/english/clj/cl2.html . Acesso em: 17 nov. 2025.
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- UNIÃO EUROPEIA. Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspectos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação. Jornal Oficial da União Europeia, L 167, p. 10–19, 22 maio 2001. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:32001L0029 . Acesso em: 17 nov. 2025.
- UNIÃO EUROPEIA. Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados – GDPR). Jornal Oficial da União Europeia, L 119, p. 1–88, 4 maio 2016. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:32016R0679 . Acesso em: 17 nov. 2025.
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