quarta-feira, 13 de julho de 2016

O direito ao esquecimento e o duelo entre a liberdade de expressão vs. a privacidade individual




Luiz Fernando Platt Carreirão

           Há quem diga que a terceira revolução industrial aconteceu com a internet. A medida que ela foi se popularizando, nossa sociedade foi se transformando. A internet está na vida de todos ou de quase todos os indivíduos, que de alguma forma dela dependem mesmo que indiretamente. É ferramenta fundamental para informação, comunicação, realização de negócios e entretenimento. Deixou de ser somente um meio de comunicação eletrônica para se tornar uma rede de indivíduos.
Isso interfere diretamente na privacidade das pessoas, fazendo com que surja a discussão se ainda é possível esconder algo. Atualmente notícias, fotos, e vídeos disponibilizados pela internet, não possuem um prazo de validade e estão disponíveis a um clique de qualquer pessoa do mundo. Essas informações inferem vários direitos de privacidade e dignidade humana. Gera uma exposição, quase sempre, desnecessária e que pode se tornar facilmente humilhante.
Esse tipo de discussão não é recente. Desde a segunda guerra mundial ficou mais claro a necessidade de preservar a personalidade das pessoas. Foi a partir da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) de 1948, na Convenção Europeia de 1950, onde de fato foi afirmado que o direito a personalidade deve ser assegurado.
Acontece que antes da década de 1990 isso era muito mais fácil. Se alguém cometia alguma infração bastava cumprir a pena e logo seria esquecido. A não ser que alguém pesquisasse diretamente nos arquivos da polícia, escola ou jornais antigos, em um espaço físico especifico. Hoje, basta pesquisar em buscadores virtuais o nome de alguém para saber todos os seus dados, e erros.  
Isso reascende as discussões sobre o tema. Novos meios de comunicação exigem novas leis e por isso é necessário criar uma ponte entre o direito constitucional e a internet. Nesse ponto que entra o termo "direito de ser esquecido" que trata do direito que todo cidadão tem de ter dados do seu passado apagado, pois sabemos que esquecer erros ou até fatos do passado permite ao ser humano não estar submetido à pena perpétua. Como bem define Daniel Bucar, em seu artigo “Controle temporal de dados: o direito ao esquecimento”, a possibilidade de mudar ao longo da vida é a única característica imutável:

“O passar do tempo permite que a projeção exterior das escolhas pessoais sofram voluntariamente alterações, ou não, de acordo com as experiência vividas. À pessoa, portanto é dada a liberdade de alterar, mudar seu comportamento, sob pena de predeterminar e amarrar sua história pessoal. Impor uma coerência imutável às escolhas existenciais, sem permitir que haja mudanças na história pessoal, é acorrentar o indivíduo ao seu passado, sem possibilitar que tenha uma vida futura, livre em suas opções. Vale notar que a própria constituição das escolhas existenciais da pessoa é feita mediante um processo dialético entre recordações e esquecimentos.” (BUCAR, 2013, p.9-10).

O direito ao esquecimento, ou também conhecido como “direito de ser deixado em paz” ou “direito de estar só”, teve seu estopim de discussão mundial, após a decisão da Corte de Justiça da União Europeia, em 2014, que obrigou ferramentas de buscas virtuais, como Google e Bing, da Microsoft, a analisarem os pedidos de exclusão de resultados feitos por cidadãos europeus, desde que as páginas encontradas contivessem informações pessoais indesejáveis para o requerente; em suma por estarem desatualizadas ou imprecisas. O processo foi motivado pelo caso de um cidadão espanhol, que recorreu à Justiça para que resultados de buscas pelo seu nome, referentes à venda de uma casa para pagar dívidas há vários anos, fossem apagados. A decisão abriu brecha para conclusão de que a liberdade de informação não se pode sobrepor ao direito à privacidade, assegurado na Europa em 1950. E essa conclusão custou caro.
Saiba mais sobre a determinação Europeia

Após a determinação judicial, o Google criou um formulário na Europa, permitindo aos cidadãos europeus solicitarem a retirada de seus dados pessoais armazenados no sistema de buscas. Desde sua criação em 2014, até novembro do ano passado, a companhia anunciou ter recebido mais de 348 mil requisições envolvendo vários sites, o que os levou a analisar 1.235.473 de URLs. Desse total, foram retirados 441.778 (42%) dos resultados das pesquisas referentes ao nome dos reclamantes, deixando os 608.928 (58%) restantes como estavam antes.
Números de análises do Google entre 2014 e novembro de 2015
 

Em fevereiro desse ano, o Google aumentou o alcance, fazendo com que os links removidos do buscador da empresa deixem de aparecer,  para cidadãos europeus, em qualquer versão de busca. Ou seja, antes a remoção de links era parcial e com a possibilidade de ser contornada: bastava que cidadãos europeus acessassem o google.com (em vez de, por exemplo, o google.co.uk, no Reino Unido, ou o google.fr, na França) que os resultados excluídos apareciam novamente.
No Brasil, o tema é garantido através de uma interpretação do Código Civil fundamentado nos direitos de personalidade - o direito que as pessoas têm de serem esquecidas pela opinião pública e pela imprensa, sobre a dignidade da pessoa humana- e nos que asseguram o direito à privacidade, à intimidade e à honra:


Saiba mais sobre o assunto:



Alguns casos: 

 


Um homem teve seu nome exposto quando o caso foi exibido no programa Linha Direta. Ele entrou com ação de danos morais e acabou ganhando. A partir do caso, foi criada a “Ementa 531”, que enuncia o “direito ao esquecimento”. O programa tem histórico em expor as pessoas, até mesmo quando os crimes foram absolvidos e os acusados inocentados. Em alguns casos os nomes dos envolvidos eram revelados e a situação descrita detalhadamente, interferindo novamente na vida dos acusados ou vítimas. 


O caso de estupro de Aída Curi, que resultou na morte da jovem em 1958, foi resgatado pelo programa Linha Direta em um dos episódios. A família da vítima entrou com um processo na justiça pedindo o direito ao esquecimento e reparação de danos morais, alegando que o programa trouxe de volta sentimentos de dor profunda. Os ministros do STJ não configuraram abalo moral indenizável, mesmo que o programa tenha usado fotos da vítima sem autorização da família.


Na última eleição, veio à tona a denúncia que o então candidato a presidência do Brasil, Aécio Neves, agredia fisicamente sua mulher, além dos seus possíveis desvios de recursos público quando governador de Minas Gerais. O caso teve certo destaque na mídia e o candidato não gostou nem um pouco. Ele entrou com processos solicitando restrição aos sites de buscas e que as notícias desfavoráveis a ele fossem retiradas de circulação, porém seu pedido foi recusado. Foi uma atitude muito polêmica e criticada por inúmeras pessoas, sendo encarada como censura.


O filme Amor Estranho Amor causou grande movimentação na internet quando foi descoberto. A apresentadora Xuxa, conhecida por trabalhar com o público infantil, era uma das atrizes e participava de uma cena intensa sexualmente com um jovem menor de idade. Xuxa entrou com uma série de processos pedindo para que o filme saísse e circulação, inclusive nas buscas do Google. A apresentadora perdeu o caso em decisão do STF, que declarou que o Google não devia fazer controle prévio de suas pesquisas. Hoje em dia muitas pessoas tem conhecimento de que o filme existe e que está longe de ser esquecido pela cultura popular. 


A atriz americana Linda Lovelace, que protagonizou o filme em 1972, entrou com um processo na justiça americana pedindo o esquecimento de seu passado alegando que seu ex marido a obrigou a participar das filmagens e a se prostituir. Mesmo depois de anos, ela ainda era procurada pela imprensa e morreu ainda lutando pelo direito de ser esquecida. Problemas como esse são recorrentes no meio cinematográfico. A atriz que protagonizou a famosa cena da manteiga em o Último Tango em Paris teve sérios problemas com a repercussão e não sabia que a cena seria gravada daquele jeito, muitos consideram um estupro, enquanto outros acreditam ser uma obra prima do cinema.


Notícias recentes:


05/07/2016 - Memória Seletiva: Estadão 
17/06/2016 - TJSP rejeita direito ao esquecimento e nega exclusão de notícias: Âmbito Jurídico
08/06/2016 - Deputados querem cadeia para quem gravar, filmar ou fotografar sem autorização: ITS Rio



Casos de criminosos e mulheres expostas sexualmente são os mais comuns. O direito de ser esquecido atua diretamente na dignidade humana e deveria ser garantido. Apesar disso, cada caso é um caso. Por sua possibilidade em poder afetar múltiplas personalidades (pessoas públicas, anônimos e personagens políticos da história), se faz necessário avaliar o preço de seu uso. Como por exemplo no caso Aécio Neves, por ser ele um político e figura pública, o direito ao esquecimento vai de encontro com o direto do eleitorado de saber que o candidato pode ser um criminoso, ou um homem extremamente agressivo com mulheres. Seu passado político e judicial está totalmente enraizado com os fatos históricos ocorridos nacionalmente ou, quiçá, mundialmente.

Filósofo avalia direito ao esquecimento em conflito com o direito à memória

Assim como o caso Xuxa, vai de encontro com o fato dela ser uma apresentadora infantil e também ser uma figura pública. Por outro lado, ela tem o direito de fazer o que quiser, esquecer o que não lhe agrada, além de poder ter sido persuadida no começo da carreira. É comum inúmeras mulheres relatarem que sentem-se infelizes por terem posado nuas ou terem feito conteúdos sexuais quando mais novas. 
Carla Peres e Mara Maravilha arrependeram-se de posarem nuas ao se converterem à Igreja Evangélica

Muitas arrependem-se, por se converterem a religiões, como a Joana Prado, Mara Maravilha e Carla Peres, ou pelo simples fato de ser algo que não voltariam a fazer, como Cameron Diaz, que em 2004, depois de uma longa batalha judicial, conseguiu impedir que o filme erótico “Ela não é um anjo” fosse divulgado, entretanto algumas imagens da produção ainda estão disponíveis na internet. Nesses casos deve-se ponderar o quanto o fato passado é importante no momento presente e necessário na construção pessoal da figura pública e do artista, tomando como ponto de análise sua função principal.
     O pior do não esquecimento é estar limitado a uma espécie de pena perpétua por seus erros do passado. A situação fica ainda pior quando você não teve escolhas e acabou sendo mais uma vítima, como Aída Curi. Ou até mesmo cidadãos que já cumpriram suas penas, ou foram inocentados, como o caso da Chacina da Candelária, e querem ter a chance de reconstruírem suas vidas numa sociedade que condena antes mesmo da justiça.  Muitos desses anônimos são expostos pela mídia sem seus consentimentos, muitas vezes até de forma involuntária. Essas talvez sejam as personalidades mais fragilizadas, uma vez que nem se quer se prepararam para enfrentar essa exposição.
Para buscar soluções é necessário traçar paralelos entre o direito constitucional dentro da internet e como podemos delimitar os limites da privacidade. A segunda chance deve ser assegurada, entretanto deixar de difundir o que foi feito pode vir diretamente contra os direitos e interesses de uma população pela informação. Como demonstrados nos seguintes artigos:

Art. 50 , XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;
Art. 50 , XXXIII – todos têm direito de receber dos órgãos públicos informações de interesse particular, coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.

            Cada um deve ter a garantia de poder recomeçar e escrever uma nova história. Porém apagar o que já foi feito, é algo a ser ponderado e colocado numa balança, em que deve-se levar em conta cada situação, a condição da pessoa natural afetada pela exposição, sua função social, seu papel na construção da história e memória coletiva e as circunstâncias do caso analisado. Para isso, é de suma importância uma legislação que se baseia em casos julgados, e não em leis escritas de maneira fixa e rígida.  Talvez assim, o direito consiga trabalhar e equilibrar questões de privacidade, sem gerar censura. Além disso, a mídia tem o dever de ter criteriosidade ao difundir informações, tendo noção do seu papel na construção da realidade social. Talvez o que mais falta no jornalismo é pensar antes de publicar e refletir antes de compartilhar. 




Referências:


BUCAR, Daniel. Controle temporal de dados: o direito ao esquecimento. Disponível em: <http://civilistica.com/wp-content/uploads/2015/02/Bucar-civilistica.com-a.2.n.3.2013.pdf> Acesso em: 30 de jun. 2016.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 30 de jun. 2016

ENUNCIADO 531. VI Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho de Justiça Federal/STJ: Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej/vijornada.pdf.> Acesso em: 30 de jun. de 2016.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Laurente Léon Chaffter. São Paulo: Edições Vértice, Editora Revista dos Tribunais: 1990.



IJUIM, Jorge Kanehide. Humanização e desumanização no jornalismo: algumas saídas. In: Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 34., 2011, Recife. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2011/resumos/R6-2440-1.pdf>. Acesso em 30 de jun. 2016.

PINHEIRO, Patricia Peck. Direito digital. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2010





Este artigo foi desenvolvido para a disciplina
EGC5020-09318/10316 - Redes Sociais e Virtuais
ministrada pelo Prof. Dr. Marcio Vieira de Souza, 
durante o primeiro semestre de 2016. 

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