Nos últimos meses, escreveu-se muito sobre se o armazenamento de
registros telefônicos anônimos autorizado pela Agência Nacional de
Segurança (NSA) deveria ser restrito, sob a alegação de que seria
demasiado invasivo da privacidade dos cidadãos norte-americanos. A
controvérsia continua, embora os registros sejam feitos por companhias
telefônicas comerciais e contenham apenas a informação referente ao
tempo das chamadas (que muitos tribunais trataram como merecendo apenas a
mínima proteção legal). Além disso, o acesso a eles é estritamente
limitado.
Portanto, chamam a atenção duas recentes matérias que ilustram uma
ameaça à privacidade muito menos discutida e que nós, enquanto
sociedade, nos impomos. Na semana passada, um passageiro de um trem de
alta velocidade decidiu registrar no Twitter, em tempo real,
o resumo de uma conversa telefônica que ouviu do general Michael
Hayden, ex-diretor da NSA e da CIA (e atualmente sócio da minha
empresa). No mesmo dia, foi publicada uma foto do secretário de Justiça do estado de Maryland,
Douglas Gansler, numa festa de verão, na qual estava cercado por jovens
menores de idade que aparentemente consumiam bebida alcoólica.
É claro que a deliciosa ironia é evidente: num caso, o ex-chefe da NSA
torna-se vítima de um grampo telefônico; no outro, um político que
critica o consumo de álcool por menores deixa de intervir quando está
cercado por pessoas que o fazem. Mas as duas matérias implicam algo mais
preocupante. A onipresença de aparelhos de gravação – juntamente com a
capacidade que todo mundo tem de divulgar algo através do Twitter, do
YouTube ou de outras plataformas digitais – significa que praticamente
qualquer ato ou frase pronunciada fora dos limites de uma residência
(ou, no caso de Gansler, numa casa particular) está sujeito a ser
maciçamente divulgado. E, como esses veículos evitam qualquer revisão
editorial, não há garantia alguma de que o que for divulgado tenha
contexto ou valor jornalístico.
Uma sociedade de delatores?
Para onde isso nos leva? Se uma pessoa conhecida tem uma discussão com a
esposa ou com o filho num restaurante, isso deveria ser divulgado? Se
um empresário importante manifesta uma opinião política numa festa
particular, deveria essa opinião (ou uma versão distorcida dela) ser
repassada ao resto do mundo? Se um político compra um livro ou uma
revista num aeroporto, deveria uma pessoa que está passando por ali
informar todo mundo?
Houve exageros ao se considerar se a comunidade de inteligência do
governo podia criar um Estado policial. Mas o verdadeiro horror da
Stasi, da Alemanha Oriental, ou da Guarda Vermelha maoísta, era o
incentivo aos delatores – cidadãos particulares dedurando outros
cidadãos particulares e até membros da família. Nenhuma agência policial
poderia ser onisciente. A opressão nesses Estados policiais vinha do
medo que tinha cada cidadão de que um outro cidadão divulgasse desvios
da linha do partido.
Essa é a questão relevante: estamos criando uma sociedade de delatores,
em que toda a conversa entreouvida, fotografia de celular ou outro
registro de comportamento pessoal é transmitido não à polícia, mas ao
mundo lá fora? Queremos intimidar o comportamento e o discurso pelo medo
de que um comentário impopular ou um escorregão provoque críticas
injuriosas ou talvez mesmo afete negativamente carreiras ou reputações?
Precisamos policiar-nos constantemente sobre o que dizemos em
restaurantes, em eventos esportivos, nos passeios públicos ou em festas
particulares?
Isto vale uma conversa pelo menos tão enérgica quanto o debate sobre a
coleta de números de telefone pelo governo tanto no plano nacional,
quanto global. E esse debate precisa ser não só sobre nossa cultura,
como sobre nossas leis.
Por Michael Chertoff.
FONTE
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